Olhar para o céu o dia inteiro e não ver Deus. E, à noite, ajoelhar-se diante da cama e agradecer ao Papai do Céu por mais um belo dia com intensos ventos sudoestes . Este é o cotidiano de quem é cativo da arte de empinar pipa.
Projetar um objeto, construí-lo minuciosamente atento a todos os detalhes, observando tamanho, peso, design, aerodinâmica e, depois de estudadas as condições meteorológicas, vê-lo levantar vôo e executar manobras que desafiam a gravidade. Tamanha perícia e fascínio pelo espaço tornam quase nula a diferença entre uma pipa e um foguete.
A fantasia de todo moleque crescido no subúrbio, longe da influência de manuais de engenharia aeroespacial, é carregada com a mesma paixão que durante meio século reuniu os maiores cientistas numa brincadeira de gente grande. A corrida espacial, além de temores apocalípticos, trouxe para a humanidade avanços nunca antes alcançados e nem sequer imaginados. Essas descobertas tecnológicas foram adaptadas para a vida doméstica e certa vez me livraram de levar algumas bordoadas nazoreia.
Numa tarde de sábado, em que eu estava dispensado das atividades escolares e de qualquer outra atividade que não estivesse relacionada com a pipa (inclusive me alimentar e tomar banho), precisei tomar a decisão mais importante da minha vida até aquele momento. Ou eu resgatava minha pipa ou preservava a antena do vizinho. Como moleque não tem a obrigação de pensar, eu não pensei, e a antena pereceu, interrompendo a transmissão da final do Campeonato Brasileiro, disputada entre Corinthians e Palmeiras. Um detalhe que não levei em consideração foi o fato de o vizinho ser corintiano roxo. Eu estava perdido.
Um minuto depois da tragédia, um homem nada simpático, com três metros de altura por dois de largura, veio procurar meu pai. Ele tinha labaredas de fogo no olhar e se tivesse percebido que eu estava escondido debaixo da cama, me transformaria numa réplica de sua antena. Meu pai tentou resolver diplomaticamente. O homem era inflexível. Ele não perderia aquele jogo por nada.
Tudo parecia perdido e eu rezava desesperadamente para todos os santos, até que fui atendido pela Santa Gambiarra. Num momento de êxtase intelectual, meu pai sugeriu que ele colocasse um Bom Bril na extremidade do cabo da antena e um milagre pôde ser observado a olho nu. A televisão 14 polegadas transformou-se numa tela de cinema com alta resolução de imagem e áudio, devido à grande potência do satélite de telecomunicações que fazia o jogo ser visto em todos os confins da Terra.
O Corinthians foi campeão e eu perdoado, graças a uma poderosa tecnologia de guerra que foi empregada para fins pacíficos e a um gol marcado aos 45 do segundo tempo.
Por Jorge Américo
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