sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

DEVOLVAM O ANARQUISMO AO POVO POBRE

SAÍDAS PARA A CRISE

DEVOLVAM O ANARQUISMO AO POVO POBRE
Uma Leitura pós I Encontro da Rede Periferia

Kauan Ñendeva

Durante o período ditatorial de Getúlio, e mais tarde, nos anos pós 64, diferentemente do estardalhaço tão característico às "esquerdas" reformistas, nós libertários, preferindo trabalhar no silencio e no anonimato, sempre estivemos presentes nas incursões da resistência direta. Atuando enquanto pessoas ou pequenos grupos, nossas atividades políticas em nenhum momento se fizeram ausentes em áreas como educação, informação, ou setores de criação artística como artesanato, dança, cinema, teatro, música, pintura, etc. O explosivo caldo social e econômico resultante do chamado Golpe Militar de 64, provocou nos finais dos anos 70, um início de levante popular nas camadas mais sofridas da população. Como resposta à progressiva piora das condições de vida do povo, principalmente entre trabalhadores sem especialização profissional, camponeses sem terra, pequenos produtores, acirrou-se a revolta no campo e inúmeras greves pararam a produção nas fábricas. Enquanto isso, saímos às ruas nos bairros pobres portando panelas vazias, gritando em alta voz contra o sistema. Infelizmente, esse despontar de levante não tardou a ser contido ainda em seu nascedouro, tanto pela frente como pela retaguarda. Pela frente, foi barrado pelas balas dos fuzis, granadas e bombas de gás lacrimogêneo da ditadura. Pela retaguarda, foi minado, sob as bênçãos da Igreja "progressista", pelos novos reformistas ou impregnado pela cantilena leninista dos "revolucionários" que acabavam por retornar do "exílio".
Assim surgiram os acordos costurados entre "autoridades militares, civis e eclesiásticas" e os "representantes" do povo irado e rebelde. Os mesmos "representantes" que algum tempo depois, dando continuidade aos planos elaborados nas pranchetas dos gabinetes, e simulando apresentar algo diferente dos partidos e sindicatos tradicionais, idealizaram o atual peleguismo cutista e petista, na prática, igual, senão pior, ao fascismo vermelho que havia antes. Assim foi contida, esmagada, vilipendiada e descartada, a rebeldia popular ainda em sua gênese.
Pouco a pouco, os anos 80 trouxeram a democracia parlamentar de nossos dias. Prosseguindo no venenoso cardápio militar da distensão "lenta, gradual e irrestrita", esse processo de "abertura" teve seu ápice na celebrada campanha pequeno burguesa das "Diretas Já", que pretendia marcar o fim de um tempo velho e ruim e o começo de novos e bons tempos. Mas que descambou na realidade nua e crua de nossos dias, onde crianças cheiram cola e fumam crack pelas ruas e praças das grandes capitais do país. No que diz respeito à maior parte da população, a ditadura continua mais viva do que nunca. Com suas delegacias projetadas e concebidas para massacrar pobres, pretos, nordestinos e prostitutas. Com suas ROTAs e esquadrões da morte institucionalizados. Com seus aparatos prisionais e repressivos. Com a morte lenta do sofrimento provocado em maiores e menores pobres, tidos como descarte do sistema. Com os milhões de
seres humanos diariamente, diante de cada um e de todos, varridos como lixo pelo poder. A ditadura armada e o apartheid econômico continua atuante esmagando as classes pobres, torturando, prostituindo, viciando, corrompendo, assassinando.
Em meados dos anos 80, aproveitando o afrouxamento da repressão em cima dos setores da classe média, os anarquistas tornam a se reaglutinar e recompor a partir de pequenos grupos, retomando trabalhos de formação política, palestras, seminários, periódicos. No particular, os anarquistas fazem intervenções importantes em algumas categorias como professores, metalúrgicos e bancários. No geral, ainda permanecemos distantes das escolas da periferia, das ruas, dos demais locais de trabalho.
Na primeira parte dos anos 90, o movimento anarquista, principalmente em São Paulo, é literalmente tomado por inúmeros jovens cheios de entusiasmo que levam as idéias e práticas anarquistas de volta às ruas, escolas, locais de trabalho. Nessa época pipocam em toda parte grêmios estudantis, grupos ecológicos, de defesa animal, teatro, música, poesia, e uma participação intensa em meios de comunicação alternativos. Com o recrudescimento da crise e a intensificação dos problemas econômicos o movimento anarquista novamente perde terreno principalmente pela insistência de militantes (livreiros?) e de "iluminados" em se recusar sair das brancas nuvens das torres de marfim dos meios acadêmicos e pisar no barro do trabalho de base dos bairros da periferia. Enfatiza-se e prioriza-se a formação de militantes de salão, estribada nos intermináveis discursos e palestras proferidas por autores, editores, doutores, mestres e phds em teoria. Muitos deles originários da classe média, que nunca sentiram na pele aquilo que sentimos
enquanto negr@s, jovens, nordestin@s, prostitut@s, pobres dentro de delegacias de subúrbio, nas abordagens policiais, nas celas infectas, quando caminhamos pelas ruas. Uma realidade tão distante destes acadêmicos quanto a senzala da casa grande.
Finalmente chegamos ao final dos anos 90, e algo novo trouxe de volta a esperança. Jovens da zona leste de São Paulo, se organizam. Dessa organização eclode varios grupos de jovens, entre eles o Conciência Anarquista, que em alguns anos passou-se a se chamar NEA (Nucleo de Estudos Anarquista). Alem dos debates entre jovens promovidos por eles, entre suas atividades estava a publicação de um Boletim Informativo, do qual o nome me esqueço no momento. Hoje o NEA não existe, porém seus membros, alguns separados, continuam atuante, tanto no ambito cultural como no social.
Um outro grupo, também formado por jovens, com semelhansa com o citado acima foi o Coletivo Sub-Humana. Este, além de alguns panfletos, publicou também um Boletim Informativo, com o mesmo nome do grupo. Eram sempre vistos em São Miguel Paulista (bairro da zona leste de S. Paulo) distribuindo panfletos e em protestos diversos. Este grupo, depois de 3 anos também teve seu nome alterado para GERA (Grupo de Estudos e Resistência Anarquista).
Não foram só estes grupos de jovens que apareceram em São Paulo, entre eles se destacaram ainda: ALDA (Anarquisatas na Luta pelos Direitos Ambientais e dos Animais), hoje Apoio Mutuo, desenvolvem atividades ligadas à ecologia social libertária; ACR (Anarquistas Contra o Racismo).
Os jovens também formaram projetos de cooperativas autogestionárias. Entre eles se destacou o Projeto Amarzem. Projeto de cooperativa de artesões, teve a participação inicial de 5 militantes e depois foram 7, os que formavam o coletivo que desenvolvia o trabalho. Além da produção de cestos, cortinas, esculturas, também ensinavam para crianças da região tanto o artesanato como a capoeira, que era praticada ao final de cada dia de trabalho. Este trabalho teve a duração de quase dois anos (1995-1997), quando, por intervenção arbitrária da diretoria da entidade onde desenvolviam o projeto, foram covardemente expulsos, por negarem-se a trabalhar na campanha eleitoral de candidatos do PT. O que retardou até os dias de hoje a implantação de tal cooperativa. Porém, continuam com o mesmo ideal autogestionário!
Ainda nos anos 90 jovens oriundos do movimento Punk, estudantil, grupos libertários e, principalmente, outrora, ociosos deram início aos debates e reuniões com o intuito de construir uma organização nacional. Depois de longos dias de intermináveis discussões, surgi no seio da classe miserável o Resistência Popular. Tendo inicio na parte leste da Grande São Paulo (Mogi das Cruzes, Suzano, Poá, Guarulhos e São Paulo), a RP teve um número considerável de adesões de jovens da periferia. Hoje a RP se encontra em quase todas regiões do Brasil, atuando nos mais diversos ambitos sociais.
Vale frisar que, entre os jovens citados, não se sabe da existência de nenhum doutor nisso ou naquilo, se haver algum, se difere de muitos, que com certesa, a contribuição que deu ou dá ao movimento é nula. Não execramos os militantes que têm formação acadêmica, pelo contrário, execramos aqueles que não saem de seu escritório, para lutar ao lado do povo pobre, como parte dele.
Mas não era só aqui que aconteciam essas mudanças entre a juventude. Depois do I Entend, tivemos uma ampla visão de como estava marchando o movimento libertário no âmbito popular em todo o país. Através de contatos feitos no encontro de Mogi das Cruzes - SP, conhecemos o trabalho de outros jovens do interior paulista. Começamos a nos comunicar via internet até nos depararmos no I Encontro de Grupos Autonomos, onde deu origem à Rede Periferia.

Sobre o Encontro
Muito aprendemos nestes dias do I Encontro da Rede Periferia. Aprendemos sobre a alegria genuína, a alegria pelo reencontro de nossa identidade e de nossa natureza diversa em todos e única em cada um, a alegria do retorno às raízes, à nossa cultura, às nossas canções, às danças originárias. No lado material, dissemos não à alegria artificial que o sistema induz pela mídia, pelo consumo de produtos despejados pela indústria capitalista a qual é inimiga dos seres vivos e da natureza. Uma indústria que vomita o câncer dos McDonalds que desertificam a alma e os campos, os planos de saúde que enriquecem alguns em cima do sofrimento de muitos, a água adocicada e colorida pela mentira, os automóveis que apagam as cores do arco-íris e tantos outros que retiram toda dignidade do ser humano.
No lado espiritual, repudiamos e rechaçamos com toda força de nosso corpo e entendimento de nossa alma, a essa grande mentira da suposta liberdade e justiça celeste, no porvir e no além, que o sistema em conluio com a Igreja procura vender-nos pelo consumo da religião. Que a liberdade e a justiça sejam usufruídas por todos desde aqui e agora, na Terra e enquanto vivemos.
Embora o conhecimento teórico tenha seu lugar e sua importância e seja "bendito o que semeia livros, livros a mão cheia". Esse conhecimento teórico para ser útil ao ser humano não pode ser estático, tem que ser dinâmico. Tem que nascer do fogo, da água, do ar, da terra, das cores do arco-íris, das árvores, dos rios, dos insetos. Esse conhecimento teórico tem que fluir da sabedoria d@s ansiões, das crianças, das mulheres, das florestas, dos sapos, das estrelas, da lua, do sol, da chuva, do frio, de uma convivência cotidiana, a partir da realidade. O conhecimento que nos interessa é o conhecimento que mitiga a sede tanto do corpo como da alma, que mata a fome. Um conhecimento que aniquila o sofrimento, suprime a dor, que se desenvolve na lida diária. O Conhecimento que nos interessa vale na medida em que serve às classes marginalizadas, ao povo pobre.
Não nos interessa esse conhecimento que nasce das produções acadêmicas para gerar mais produções acadêmicas, um fim em si mesmo, que engorda as contas bancárias das editoras, dinheiro que vem de setores da classe média que compram livros para desenvolverem suas teses, antíteses, sínteses, que geram outros livros. Livros que explicam sociedades concebidas para existir sem o povo. Povo que, longe das universidades, academias e clubes fechados aos iletrados, torna-se cada vez mais pobre, cada vez mais alheio a toda essa teoria que pretende sistematizar e "resolver" seus problemas. Para nós, marginalizados, essa elitização é tão nefasta quanto inconseqüente, essa intelectualização do anarquismo, assim como seus cursos, seminários, palestras, encontros "culturais" financiados pelo mesmo governo que nos oprime, onde brilham @s doutor@s, que com seu "saber" examinam e explicam a problemática d@s descendentes african@s, dos povos originários, das crianças descalças que perambulam nas ruas cheirando cola e fumando crak, d@s pres@s, d@s nordestin@s, d@s pobres, d@s prostitut@s.
Repudiamos esta intelectualização pequeno burguesa onde os que sofrem se tornam única e exclusivamente objeto de estudos, de pesquisas e de análises por parte d@s espert@s e entendid@s no assunto. Não somos animais de laboratório. Basta! Não precisamos, nem queremos mais que nos analisem. Chega de teorias, teses, receitas, e saídas preestabelecidas. Todo esse amontoado de lixo "científico" nunca passou de um intenso comércio de livros de custo inacessível aos marginalizados. Tudo isso, longe de se constituir num avanço, apenas retarda ainda mais o ressurgimento do sol revolucionário contido na pele do povo pobre. Povo tão completamente distante quanto alheio a todas essas discussões tão acadêmicas, tão elitistas, tão pretensiosas. Discussões que reivindicam para si próprias patamar de fórum de classe proletária, mas onde a classe proletária nunca teve seu lugar, sua voz, sua vez, estando sempre completamente ausente e distante.
Atravez deste contato com pessoas destituídas de conceitos ideológicos e de títulos ou doutorandos, porém com ideais e práticas revolucionárias, fortalecemos nosso potencial em destruir para construir.
A necessidade de um trabalho de base levou algumas pessoas a olhar de forma crítica aos grupos clubísticos dedicados à formação ideológica, atividades acadêmicas e outras que pouco ou nada influem no despontar de saídas efetivas da situação precária que hoje vivemos enquanto classe menos favorecida. Renasce o zapatismo no México e muito, muito aprendemos com ele. Vários movimentos de resistência em todo o mundo passam a ser fortemente influenciados, inclusive no Brasil. Prova disso foi o II Encontro Pela Humanidade e Contra o Neoliberalismo em Belém do Pará que, mesmo promovido por instancias reformistas, mesmo acontecendo numa cidade distante dos grandes centros urbanos do sudeste, mesmo com o cerceamento das liberdades de expressão e do boicote à participação dos mais pobres, chegou a reunir centenas de pessoas, atraindo os setores mais radicais do pensamento libertário, vindos dos mais diversos recantos do Brasil e do mundo. A partir de Belém delineou-se duas grandes correntes da ação política: a reformista, representada pelos partidos, movimentos e sindicatos atrelados, os mesmos que sufocaram a rebeldia florescente no final dos anos 70; e a revolucionária, composta por pessoas e grupos em formação. O levante de Chiapas, se não deu origem, pelo menos contribuiu para o surgimento e crescimento de movimentos internacionais como a Ação Global dos Povos, os quais, por sua vez, serviram para impulsionar ainda mais os ânimos das pessoas cansadas da mesmice reformista dos partidos e seus respectivos satélites. Nos dias atuais, à proximidade de mais uma eleição em todos os municípios do Brasil, surge um exército de aproveitadores tanto da "esquerda" quando da direita, com seus bolsos cheios de dinheiro, influências, passagens de avião, facilidades, se aproximando desses movimentos de base.
Enquanto os movimentos de base crescem em quantidade e qualidade esvaziando a proposta reformista, os reformistas em desespero vestem a camisa de revolucionários por cima da camisa eleitoral e se infiltram nos movimentos barriais, nas aldeias dos povos originários, nas agremiações dos sem-teto, nos movimentos d@s negr@s, nos núcleos de mulheres, nas associações de sem-terra, e nos grupos de minoria. E dessa forma, pelo conto do vigário, induzem ao erro bons militantes que trocam a rebeldia pelo conformismo e substituem a ação direta pelo reformismo, partindo em direção ao grande carrossel da massa de manobra. Potenciais revolucionários tornam-se inocentes úteis ao sistema, que passam a se dedicar à disseminação da discórdia e da divisão nos meios radicais e revolucionários. Almas outrora rebeldes são cooptadas pelo lábia dos fascistas vermelhos. Como seus mestres, destituídos de argumentos e razões plausíveis, adotam o ataque pessoal e a agressão moral como estratégia de ação política.
O eterno vício das "esquerdas" no Brasil de girar em torno de infindáveis debates ideológicos onde a militância não faz outra coisa diferente de apresentar fórmulas, formas e receitas prontas. O apontar caminhos pré estabelecidos a serem seguidos pelos marginalizados são, sem sombra de dúvida maravilhosos no sentido poético e intelectual. Belíssimos trabalhos muito bem elaborados e produzidos dentro de suas belas encadernações que embelezam as ricas estantes das casas e mansões dos jardins onde habita a classe média. Porém, esses mesmos trabalhos, por se revelarem impraticáveis no dia a dia dos sem trabalho, sem terra, sem teto, sem alimento, resulta em que tudo continua como antes ou pior pelo crescimento do desânimo nas pessoas que anseiam por iniciar uma real construção de uma nova sociedade sem classes e com justiça social. A necessidade de sair desse círculo viciado e vicioso levou algumas
pessoas a buscar ações onde fossem respeitados os momentos e as vivências de cada um.
Procedimentos de busca constante por uma identidade, por um norte, por uma direção, mas uma identidade, um norte e uma direção que venha de dentro para fora e horizontalmente. Uma identidade que nos roubaram ao sufocar nossa cultura, nossos costumes, nosso jeito peculiar de pensar, nossa forma única de agir. Uma identidade que nos retiraram ao nos expulsar de nossas terras e roubar nossos pertences. Esse foi um importante motivo que reuniu 20 pessoas, desde representantes (relação horizontal) de skatistas, sem teto, até estudantes universitários e desempregados. Pessoas diferentes, diversas, distintas, mas no mútuo ouvir atento encontraram pontos comuns, distantes dos discursos ideológicos.
Enfim, o I encontro da Rede Periferia foi basicamente isso, troca de experiências, mas não no sentido de mostrar que o trabalho de um é melhor, maior ou mais importante que o de outro, não em querer demonstrar que determinado método aplicado em uma comunidade será infalível nas outras, mas no reconhecimento de que as saídas verdadeiras nascem e se desenvolvem a partir das maiores vítimas do sistema, as classes sofridas, a grande maioria da população, o povo pobre. Nestes poucos dias do Encontro, companheiros e companheiras presentes, muito aprendemos. Mais efetivo que apresentar propostas de mudança, é buscar, juntos, a mudança. Pouco ou nada nos interessam teorias burguesas que enchem os bolsos e engordam as contas bancárias dos editores vendendo livros que geram mais livros. Queremos ver despontar, florescer e frutificar a anarquia que nasce do seio do povo pobre, a verdadeira anarquia, a anarquia que do agir coerente e constante constrói a dinâmica e a essência de sua mutante e nunca estanque teoria revolucionária.

Se eles dizem estar no berço da revolta, nós moramos na placenta!

Kauan Ñendeva

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